Causa determinante, boa-fé objetiva e Covid-19: elementos para a (não) revisão dos contratos imobili
Os impactos jurídicos decorrentes da pandemia do COVID-19 é um tema muito em voga ultimamente. E com razão. Apenas para se ter uma ideia, na semana encerrada em 28 de março, os pedidos de auxílio-desemprego nos Estados Unidos saltaram para 6,648 milhões[1], número esse nunca antes visto naquele país. A pandemia também já atingiu praticamente todos os países do mundo, e, em pouco mais de três meses, já fez mais de 50.000 vítimas fatais e mais de um milhão de infectados[2].
Buscando alternativas para minimizar os impactos devastadores do COVID-19, diversos países adotaram políticas de isolamento social, determinando a interrupção de atividades econômicas e sociais e acarretando, por consequência, numa grave crise econômica mundial.
Na cidade de São Paulo, por exemplo, foi publicado no dia 17/03/2020, o Decreto n. 59.283/20[3], que declara a situação e emergência no Município e que vigorará enquanto perdurar a situação de emergência. Nesse mesmo sentido, o governo do Estado de São Paulo também decretou estado de calamidade pública, por meio do Decreto n. 64.881/2020[4], tendo determinado o fechamento de todas as atividades consideradas não essenciais.
Como corolário lógico desse contexto pandêmico e, sobretudo, de pânico, milhares de empregos foram perdidos, tributos não foram pagos, obrigações não foram cumpridas, contratos foram rompidos, medidas intervencionistas foram adotadas, acarretando numa eclosão de demandas jurídicas, das mais diversas naturezas.
[1] https://economia.uol.com.br/noticias/reuters/2020/04/02/pedidos-semanais-de-auxilio-desemprego-nos-eua-batem-recorde-novamente.htm; acessado em 04/04/2020, às 07h12min.
[2] https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/04/mais-de-1-milhao-de-pessoas-ja-foram-infectadas-por-coronavirus-mortes-superam-50-mil.shtml; acessado em 04/04/2020, às 08h20min.
[3] http://www.capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-declara-situacao-de-emergencia-com-medidas-para-evitar-disseminacao-do-coronavirus; acessado em 04/04/2020, às 08h25min.
[4] https://www.saopaulo.sp.gov.br/wp-content/uploads/2020/03/decreto-quarentena.pdf; acessado em 04/04/2020, às 8h27min.
Será abordado adiante, no entanto, apenas dos impactos do COVID-19 nos contratos privados, notadamente aqueles relacionados à prática imobiliária, tais como compromissos de venda e compra de imóveis, contratos de locação (inclusive em Shopping Centers), contratos de construção e demais congêneres.
A pandemia de COVID-19 pode ser considerada como evento de força maior?
O presente artigo não tem qualquer pretensão de esgotar o conceito de força maior – e, tampouco, de se aprofundar em conceitos de direito material -, mas apenas de trazer ao debate alguns pontos ainda muito turvos em relação aos contratos imobiliários. Até mesmo porque diversos doutrinadores, advogados e tantos outros operadores do direito, de elevado gabarito e cultura jurídica notável, já estão se debruçando sobre o tema e, certamente, apresentarão estudos com muito mais propriedade e competência.
Com efeito, para fins do presente artigo, entende-se que a pandemia de COVID-19 poderá sim ser caracterizada como força maior, desde que devidamente comprovada, no caso concreto, a impossibilidade de o devedor cumprir com sua prestação em razão desse evento. Não precisará demonstrar, no entanto, que o COVID-19 se trata de uma pandemia extremamente grave ou algo do tipo, pois se trata de fato notório e inequívoco. Deverá demonstrar sim que esse evento lhe impossibilitou de cumprir com sua prestação, ou que o contrato ao que se vinculou se tornou excessivamente oneroso.
O fato de a pandemia possuir um caráter temporal passageiro não tem o condão de a descaracterizar, por si só, como força maior. Isto porque a força maior estará caracterizada pelo simples fato de causar, diretamente, onerosidade excessiva a uma das partes, sem que qualquer uma delas tenha contribuído para tanto. Ainda que a pandemia possa ser passageira, não há como se negar o efeito jurídico devastador já causado, impactando direta e significativamente diversos contratos, seja simplesmente impedindo que uma das partes adimpla sua obrigação no prazo estipulado, seja tornando sua prestação excessivamente onerosa.
Em suma, nosso ordenamento jurídico permite a resolução do contrato quando caracterizada a onerosidade excessiva em razão de caso fortuito ou força maior, não prevendo, em momento algum, a questão temporal de tais eventos, se devem ser passageiros ou não, como requisito essencial.
Necessário “apenas” que tenha desequilibrado o contrato, até mesmo porque, ainda que o evento seja passageiro, as consequências jurídicas do evento se perpetuam no tempo e geram consequências que não se extinguem ao mesmo tempo em que a força maior cessa.
O COVID-19 e os contratos em geral
Pois bem. Partindo-se da premissa de que a pandemia de COVID-19 seja, efetivamente, considerada como evento de força maior, nosso ordenamento jurídico regula as consequências das obrigações afetadas por esse evento excepcional, não sendo necessários maiores malabarismos interpretativos ou, pior, intervenções estatais visando regulamentar tais situações.
Inicialmente, é importante lembrar que a força maior se encontra prevista no art. 393 do Código Civil, no Título IV, “Do Inadimplemento das Obrigações”, não por acaso. E o “Título IV” está inserido na Parte Especial do Código, iniciando com o “Título I”, “Das Modalidades das Obrigações”, passando pela “Transmissão das Obrigações”, “Adimplemento e Extinção das Obrigações” até chegar ao “Inadimplemento das Obrigações.”
Portanto, não há como se ignorar a ordem cronológica que o próprio Código Civil estabeleceu, até mesmo por se tratar do caminho natural das obrigações em geral. Significa dizer que, caracterizados os eventos previstos nos capítulos que tratam do inadimplemento, os eventos anteriores já restaram superados.
Isto porque, vale lembrar, uma das formas de interpretação das leis é a interpretação sistemática, na qual, depois de descoberta a mens legis, deve-se analisar a conexão com as demais normas do estatuto onde se encontra. Na interpretação sistemática há dois aspectos: a) o de quando é feita em relação à própria lei a que o dispositivo pertence; b) o de quando se processa com vistas para o sistema geral do direito positivo em vigor. No primeiro aspecto, que é o que nos interessa por ora, temos o caráter geral da lei: o livro, capítulo ou parágrafo onde o preceito se encontra; o sentido tecnológico-jurídico utilizado nas palavras do teor normativo[5].
Significa dizer, em outras palavras, que uma vez caracterizada a força maior, as consequências jurídicas aplicáveis devem ser aquelas previstas no artigo 393 do Código Civil, não se admitindo, que se interprete os dispositivos do Código sem qualquer critério, apenas para se fundamentar uma conclusão já pré-definida.
Referido artigo 393 dispõe o seguinte:
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.
Parágrafo único. O caso fortuito ou de força maior verifica-se no fato necessário, cujos efeitos não era possível evitar ou impedir.”
Note, portanto, que o dispositivo trata claramente do afastamento do dever de indenizar quando os prejuízos decorrerem de caso fortuito ou força maior. E mais, não há qualquer menção à culpa, por qualquer das partes.
A discussão de culpa, portanto, é mais do que irrelevante nesses casos, é incabível. E esse aspecto é de suma importância trazer à luz, pois muito se tem discutido nas negociações que o vendedor ou o locador, por exemplo, também não poderiam fazer concessões às obrigações previstas nos contratos, pois também estariam sofrendo prejuízos – como, de fato, todos estão.
[5] LEITE, G. Apontamentos iniciais sobre a interpretação das leis. Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Disponível em https://www.academia.edu/1805837/Apontamentos_iniciais_sobre_a_interpreta%C3%A7%C3%A3o_das_leis. Acesso em 04/04/2020.
Por outro lado, o dispositivo também não permite, em momento algum – e nem por qualquer tipo de interpretação, por mais extensiva, sistemática ou teleológica que seja – que o comprador ou locatário possa permanecer com o bem indefinidamente e sem qualquer contraprestação ao vendedor ou locador. A lei é clara: o devedor apenas não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior. Não fala em isenção, em desconto, ou qualquer outro tipo de modificação das bases contratuais. Pensar de maneira diferente seria interferir indevidamente na intenção e vontade das partes.
Ainda, não é todo e qualquer contrato que deva, necessária e automaticamente, sofrer as consequências previstas no artigo 393 supra citado. Será necessário demonstrar, no caso concreto, como a ocorrência de tais eventos impediu que o devedor cumprisse com sua prestação, gerando, por consequência, prejuízo ao credor. Em outras palavras, não basta que o devedor alegue a pandemia do COVID-19 como força maior – como nos parece inquestionável que se trata disso – para se ver livre de suas obrigações, ainda que momentaneamente.
E, ainda que consiga comprovar a relação direta, o nexo causal entre a pandemia e sua mora ou inadimplemento, a lei lhe concede “apenas e tão somente” o afastamento do dever de indenizar.
A resolução do contrato em razão da onerosidade excessiva imposta pela força maior nos parece, salvo melhor juízo, ser uma faculdade das partes, tanto do credor como do devedor, por interpretação teleológica do artigo 478, do Código Civil. O credor também pode optar pela resolução do contrato em razão do inadimplemento do devedor – ainda que não decorrente de sua culpa stricto sensu -, não fazendo jus, no entanto, ao recebimento de qualquer indenização[6].
[6] “A existência da prestação de pagar o preço está ligada à prestação de entrega da coisa, mas esta só se impossibilitou por motivos alheios à vontade do devedor-vendedor. Será, então, que ele não merece receber o preço? A teoria dos riscos sabe que alguém tem que sair perdendo. Os dois não podem ficar imunes ao mesmo tempo. Afinal, houve uma diminuição patrimonial no âmbito do eixo comprador-vendedor. Um dos polos tem que, como se diz na linguagem contábil, realizá-la. Os dois estão em igual situação: ambos iriam cumprir com suas prestações. Só que uma delas se impossibilitou por motivo alheio às suas vontades. Ninguém teve culpa.” WERNER, José Guilherme Vasi, Direito dos Contratos. Rio de Janeiro : FGV, 2014, p.166.
Neste caso, deverão ser combinadas as disposições previstas nos artigos 475 e 393, do Código Civil.
“Art. 475. A parte lesada pelo inadimplemento pode pedir a resolução do contrato, se não preferir exigir-lhe o cumprimento, cabendo, em qualquer dos casos, indenização por perdas e danos.”
O devedor, por outro lado, pode optar pela resolução do contrato em razão de ter-se tornado excessivamente oneroso, nos termos do artigo 478, do Código Civil, não sendo seu direito potestativo, no entanto, pleitear qualquer isenção além daquela prevista em lei. Assim, ocorrendo a resolução do contrato, operam-se seus efeitos ex nunc.
“Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.”
Qualquer alternativa ou solução fora disso será decorrente da livre negociação entre as partes, o que, aliás, é o que se deseja e recomenda.
Ademais, por tudo o que já se expôs acima, é possível aplicar a disposição do artigo 317, do Código Civil, a fim de reequilibrar o contrato e prestação devida pelo devedor, desde que não se esteja diante de força maior. Assim, não nos parece ser possível alegar a ocorrência de força maior – e, portanto, onerosidade excessiva – e, ao mesmo tempo, que o juiz determine “o valor real da prestação”. Confira o que dispõe o mencionado artigo 317:
“Art. 317. Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quanto possível, o valor real da prestação.”
Veja que o referido dispositivo fala em “desproporção manifesta”, estando ele inserido no Capítulo I, “Do pagamento”. A regra prevista é que, ocorrendo um “motivo imprevisível”, nos termos da lei, que torne a prestação desproporcional, mas ainda passível de cumprimento, o juiz poderá adequar a prestação devida ao seu real valor.
realizá-la. Os dois estão em igual situação: ambos iriam cumprir com suas prestações. Só que uma delas se impossibilitou por motivo alheio às suas vontades. Ninguém teve culpa.” WERNER, José Guilherme Vasi, Direito dos Contratos. Rio de Janeiro : FGV, 2014, p.166.
Observando-se a regra de hermenêutica exposta anteriormente, a aplicação do artigo 393, portanto, aplica-se em situação consequente, ou seja, em que, em razão de caso fortuito ou força maior, o devedor cause prejuízo ao credor e a obrigação devida se torne impossível por causa não imputável ao devedor. O prejuízo e a impossibilidade do cumprimento da obrigação, portanto, são condição para a aplicação do referido dispositivo, ou seja, a força maior restou fatalmente comprovada no caso concreto, não tendo sido possível adequar a prestação do devedor. E nesse caso, repita-se, o devedor fica isento de indenização, sendo facultado às partes a resolução do contrato.
“Se falta um dos termos da troca (ainda que por causas de força maior, sem que algum dos contratantes tenha culpa) falta a própria operação econômica, o contrato perde a sua funcionalidade”[7]
De igual modo, não nos parece razoável a aplicação dos artigos 479 e 480 na tentativa de modificação equitativa do contrato. Isto porque, na situação concreta da pandemia do COVID-19, todas as partes foram direta e profundamente atingidas. Não se trata de um evento que atingiu determinado setor, atividade ou grupo de pessoas, mas sim toda humanidade.
“Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato”.
“Art. 480. Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executá-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva.”
[7] ROPPO, Enzo. O Contrato. Coimbra : Almedina, 1999, p. 255.
Portanto, permitir que o juiz modifique, equitativamente, as condições do contrato seria permitir, em última análise, que o juiz interferisse na própria disposição de vontade das partes, reformulando por completo a avença original, o que não se deve admitir. Veja, embora se trate de um evento extraordinário e imprevisível, esse evento não desequilibrou o contrato em relação a uma das partes apenas, mas modificou, substancialmente, as bases objetivas do próprio negócio.
Em resumo, considerando-se os contratos imobiliários, de maneira geral, como bilaterais e sinalagmáticos, nos quais há uma interdependência das prestações, pressupõe-se que a obrigação de uma das partes é a razão de ser da obrigação da outra. Por essa razão, não nos parece razoável que, uma vez rompido o sinalagma, o juiz possa interferir na soberania da vontade das partes, a fim de, praticamente, estabelecer um novo contrato.
O “motivo imprevisível”, previsto no artigo 317, sugere, grosso modo, tratar-se de “gênero”, sendo que o “caso fortuito e força maior”, previstos no artigo 393, tratar-se-iam de “espécie”. Em outras palavras, é possível que se esteja configurado um “motivo imprevisível” sem que, necessariamente, se esteja diante de caso fortuito ou força maior. Se essa for a situação, estar-se-á diante da situação prevista no art. 317, na qual o devedor não poderá pleitear a resolução do contrato, com os benefícios do art. 393. Por outro lado, se estiver configurado o caso fortuito ou a força maior, o devedor poderá optar entre a solução do artigo 317 e a do 319.
Considerando-se, portanto, os princípios da teoria dos contratos, tem-se que o dirigismo é a grande exceção ao princípio da liberdade contratual, com a imposição de normas cogentes em território até então dominado por normas dispositivas.
Nesse sentido, mostra-se indevida qualquer interferência estatal. O Estado não poderá impedir, na base da “canetada”, empresas de irem à falência, por exemplo. O problema é muito maior e mais complexo, sendo que decisões populistas terão apenas efeitos imediatos – se é que terão algum efeito -, porém, a um alto custo econômico, financeiro e social num futuro não tão distante.
Apenas à guisa de exemplo, congelamentos de preços geralmente tem forte efeito negativo, como desincentivo à produção, à distribuição e à comercialização de bens, caso existam aumentos de custos não acompanhados por possibilidade de repasses dos referidos aumentos de custos aos preços.
É a consequência natural e lógica da intervenção estatal em qualquer tipo de contrato, inclusive nos de natureza imobiliária, como a pretendida e famigerada suspensão das ações de despejo. É ilógico adotar medidas “antigravidade”, pois, caso esse tipo medida funcionasse, bastaria um decreto ou uma lei proibindo o próprio coronavírus e pronto, a situação estaria absolutamente resolvida.
Apenas para que a ideia fique clara, o governo poderá até impedir, por exemplo, que locadores procedam com o despejo por um determinado período. Essa medida certamente ganhará manchetes de jornais e aplausos da população menos esclarecida. O que eles não sabem, contudo, é que, a médio e longo prazo, o governo não poderá obrigar, por exemplo, que proprietários de imóveis, inseguros com medias draconianas como essa, neguem-se a alugar seus imóveis. Ou pior, que vendam seus imóveis e migrem seus recursos para outra classe de ativos, quiçá para outros países com maior segurança jurídica.
A consequência disso é que, a longo prazo, os imóveis destinados à locação tornem-se mais escassos, em razão da hostilidade e insegurança sofrida por pequenos e grandes proprietários (inclusive e, talvez, principalmente, fundos imobiliários), com o aumento do valor médio dos aluguéis, afetando diretamente o direito à moradia. O que parecia ser bom, num primeiro momento, mostrou-se altamente nocivo no longo prazo.
O COVID-19 e os principais contratos imobiliários
A partir das premissas expostas acima, serão abordados a seguir, de maneira superficial, os impactos da pandemia nos principais contratos imobiliários. Em todos eles, com maior ou menor possibilidade de êxito, se for arguida a força maior como excludente da obrigação, a comprovação inequívoca da pandemia como causa determinante para o inadimplemento contratual é condição insuperável para o afastamento do dever de indenizar do devedor, conforme exposto acima.
De maneira geral, contudo, o ideal seria que as partes negociassem de boa-fé, analisando o caso concreto e visando, sobretudo, a manutenção do contrato.
Compromissos de Venda e Compra de unidades autônomas e de lotes
Como consequência do cenário econômico atual, não restam dúvidas que os empreendimentos imobiliários serão, novamente, um dos principais afetados pela crise, seja devido a possíveis atrasos nas obras, seja devido à provável nova avalanche dos chamados “distratos”.
Com relação ao atraso nas obras, conforme dito acima, é provável que os empreendedores, de maneira geral, aleguem a ocorrência de força maior para evitar a aplicação de multas aos adquirentes, o que nos aprece que será admitido com certa tranquilidade pelo Judiciário. Se a jurisprudência já havia consolidado o entendimento (posteriormente positivado pela Lei n. 13.786/18) pela validade da cláusula de tolerância de 180 (cento e oitenta) dias considerando como caso fortuito diversos contratempos que o empreendedor normalmente se depara ao longo do empreendimento, em condições normais de mercado, com maior razão ainda deve considerar o atraso de obra em razão da maior crise sanitária mundial já vista[8].
Restará saber, contudo, como o Judiciário considerará eventual período de atraso frente ao prazo de tolerância já previsto no artigo 43-A, da Lei n. 4.591/64 (introduzido pela Lei n. 13.786/18). A melhor solução seria, ao nosso sentir, avaliar o caso concreto, identificando o estágio em que cada obra se encontrava, a sua localização, e quais foram as efetivas dificuldades enfrentadas pelo empreendedor, documentalmente comprovadas. Certamente haverá casos em que não será devido nenhum acréscimo ao prazo de tolerância já previsto, bem como certamente haverá outros inúmeros casos em que será devida a prorrogação desse prazo, quiçá por igual período.
[8] https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/afp/2020/03/16/oms-considera-coronavirus-maior-crise-sanitaria-mundial-da-nossa-epoca.htm. Acesso em 04/04/202, às 15h.
Em relação aos chamados “distratos”, reitero insistentes críticas que fiz à Lei n. 13.786/18, sobretudo no que diz respeito à sua completa desnecessidade, uma vez que nosso ordenamento jurídico já oferecia fartos dispositivos aptos a regularem a matéria. E que essa Lei decorreu, a bem da verdade, de um indevido ativismo social, somado à erros grosseiros do Judiciário, que confundiu conceitos básicos relacionados às causas de extinção dos contratos.
A consequência prática disso é que, assim como em momentos pré “Lei dos Distratos”, o Judiciário certamente aplicará a “teoria da imprevisão” e reconhecerá a onerosidade excessiva do Contrato em relação ao comprador, afastando a aplicabilidade da “Lei dos Distratos”. Caberá aos empreendedores, assim como lhes cabia anteriormente, comprovar que, no caso concreto, a pandemia não alterou o sinalgma e as bases objetivas do próprio contrato.
Em relação aos contratos para aquisição de terrenos, geralmente estabelecem cláusula de irretratabilidade e irrevogabilidade, não prevendo a rescisão unilateral. No entanto, conforme destacado acima, certamente os empreendedores poderão se valer da regra prevista no artigo 393, do Código Civil, a fim de resolver o contrato sem a obrigação de pagamento de qualquer indenização.
Caso seja possível a manutenção do contrato, é igualmente certo que poderão valer-se das regras contidas nos artigos 478 e seguintes, a fim de readequarem eventuais prazos e obrigações assumidas perante o terrenista, devendo ser comprovado, com tudo, a impossibilidade de aprovação de projetos em razão da pandemia.
Contratos de locação – residenciais e não residenciais e em Shopping Centers
Assim como em todos os casos, se for arguida a força maior como excludente da obrigação, será imprescindível a comprovação inequívoca da pandemia como causa determinante para o inadimplemento contratual.
Independentemente de se tratar ou não de locação residencial, não se vislumbra, contudo, razão alguma aos locatários que buscam judicialmente a renegociação do aluguel. Isto porque, conforme já exposto acima, o artigo 393, do Código Civil “apenas” isenta o devedor da indenização por perdas e danos. Apenas e tão somente isso. Também não há na Lei n. 8.245/91 nenhum dispositivo que permita a revisão do valor da locação fora das hipóteses previstas em seus artigos 68 e seguintes.
O locatário poderá, simplesmente, entregar as chaves e pleitear a resolução do contrato em razão da onerosidade excessiva decorrente da pandemia, desobrigando-se do pagamento de qualquer indenização. Não terá fundamento jurídico algum, contudo, o pleito de isenção ou desconto de aluguéis, de taxas condominiais, etc.
Nem se alegue que a revisão de aluguéis poderia se dar com base nos artigos 317 e 567, ambos do Código Civil. Isto porque, conforme é sabido, o Código Civil, em seu artigo 2.036, fixa expressamente a eficácia de Lei Especial, que, no presente caso, é a Lei nº 8.245/91, para regular a locação de prédio urbano.
Não obstante, não há dúvida de que o Código Civil, ao tratar do capítulo da locação, só está a regular os contratos de locação fora do alcance da Lei Especial, a exemplo dos referentes à locação de bens móveis; de bens imóveis pertencentes à entidade da administração direta ou indireta, desde que não exista legislação específica; de vagas autônomas de garagem, dentre outros expressos no artigo 1º da Lei nº 8.245/91.
Infelizmente, contudo, o ativismo judicial, respaldado pelo populismo da classe política, já tem proferido diversas decisões cedendo ao discurso fácil e que, aparentemente, seria a panaceia para todos os males.
No caso específico dos Shopping Centers, há, contudo, determinadas obrigações contratuais que podem ser revisadas pelo Judiciário, tais como questões relacionadas à repartição de despesas comuns, verbas devidas ao fundo de promoção, marketing, dentre outros não relacionados diretamente ao valor do aluguel em si, também com fundamento no artigo 317, do Código Civil.
Dificuldade maior terão aqueles contratos cuja remuneração encontra-se ajustada por meio de Custo Total de Ocupação (CTO). Nesta hipótese, o locatário deverá fazer prova dos valores que compõem as despesas comuns, fundo de promoção, dentre outras, daqueles referentes ao valor do aluguel. Obviamente, trata-se de uma prova diabólica, uma vez que, na maioria dos casos, tais provas dependem da colaboração do Shopping.
Por outro lado, os contratos cuja remuneração tenha sido ajustada em percentual sobre o faturamento – sem qualquer vinculação com aluguel mínimo mensal -, com maior razão ainda deverão ser mantidos, sem qualquer interferência judicial. Certamente, trata-se da forma de remuneração mais adequada e justa para o momento, pois reflete exatamente a intenção das partes. Ora, encontrando-se o Shopping fechado – independentemente de decorrer de imposição governamental ou não -, o faturamento do locatário tende a ser igual a zero. Nesse caso, qualquer percentual incidente sobre zero é igual a zero. Caso, contudo, o locatário exerça algum tipo de atividade, ainda que reduzida (como, por exemplo, vendas online no marketplace do Shopping), será devido o aluguel percentual, que será proporcional ao efetivo benefício econômico auferido pelo locatário. Nada mais justo e equilibrado.
Na hipótese de aluguel percentual puro, por exemplo, será possível a revisão judicial apenas no concerne às obrigações acessórias, mas não à remuneração em si, que permanecerá justa e equilibrada durante o período de crise. Não há que se olvidar, com efeito, que o locatário poderá, ainda, pleitear a resolução do contrato em razão da sua onerosidade excessiva, isentando-se do pagamento de indenização pela rescisão antecipada, desde que comprove, no caso concreto, o nexo causal entre a força maior e a sua impossibilidade em cumprir com o contrato. Não faz jus, contudo, a qualquer pleito relacionado à isenção ou desconto de aluguéis fora das hipóteses previstas na Lei n. 8.245/91.
De maneira geral, contudo, o ideal seria que as partes negociassem de boa-fé, analisando o caso concreto e visando, sobretudo, a manutenção do contrato.
Conclusão
O que se pretendeu demonstrar no presente artigo, em linhas gerais, foi a necessidade da comprovação inequívoca da pandemia como causa determinante para o inadimplemento contratual. Não basta ao devedor alegar, genericamente, a força maior como excludente de suas obrigações. Com menos razão ainda poderá pleitear ao Judiciário revisão contratual visando a alteração das condições objetivas do próprio contrato.
Evidentemente, caso o contrato possa ser mantido, sem que se imponha um ônus demasiado ao credor - contrariando frontalmente sua soberana manifestação de vontade -, poderá o Judiciário reequilibrá-lo, conforme exposto acima. Caso contrário, restará às partes buscarem a resolução do contrato em razão, sem a cominação de indenização por perdas e danos em desfavor do devedor, nos termos do que dispõe o art. 393, do Código Civil.
O cenário atual em que vivemos reforça ainda mais a importância dos princípios da probidade e da boa-fé contratual, consagrados no art. 422, do Código Civil. Nessa esteira, ainda que a manutenção do contrato não seja possível, isto é, se a rescisão contratual for o único caminho possível, as partes deverão, no ambiente da renegociação, alocar da maneira mais eficiente possível os prejuízos decorrentes de tal rescisão, observando-se o princípio da boa-fé.