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Qual o papel do Compliance na prevenção ao tráfico de pessoas?

Problema que remonta à Idade Média, o tráfico de pessoas acabou sendo expandido e facilitado com a globalização, quando deslocamentos intercontinentais tornaram-se mais rápidos, frequentes e acessíveis.


Previsto no art. 149-A [1] do Código Penal, cuja pena pode chegar a 12 anos de reclusão [2], o crime de tráfico de pessoas é definido pelas Nações Unidas [3] como o “recrutamento, transporte, transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostituição de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, à servidão ou a remoção de órgãos”.


De acordo com relatório [4] Global sobre Tráfico de Pessoas produzido em 2018 pelo escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), o número de casos de tal delito tem crescido nos últimos anos, sendo a vasta parte das vítimas traficadas para fins de exploração sexual, principalmente nas Américas, Europa, Leste da Ásia e Pacífico. No oeste da África, por exemplo, a maior parte das vítimas de exploração sexual era formada por crianças.


O diploma também mostra outras formas de tráfico de pessoas como meninas forçadas ao casamento, adoção ilegal de crianças, criminalidade forçada, trabalho forçado e remoção de órgãos.


O documento aponta ainda que conflitos armados que provoquem êxodos migratórios podem favorecer traficantes, pois estes se aproveitam de pessoas em situação de desespero e vulnerabilidade. Além disso, o recrutamento de crianças para o combate armado foi amplamente documentado.


Esse tipo de crime é um dos mais lucrativos para organizações criminosas e movimenta mais de 32 bilhões de dólares em todo o mundo [5], envolvendo variados setores da economia como agricultura, construção, vestuário, têxtil, restaurantes, trabalhos domésticos, turismo, entretenimento e indústria do sexo [6].


Com tamanhas cifras envolvidas, há um risco ainda maior de corrupção, tanto de agentes públicos como de colaboradores de empresas privadas, de modo que estas devem dedicar especial atenção a tal questão, pois podem contribuir em muito para a solução ou amenização do problema.


Buscando fornecer uma ferramenta eficiente para combater esse crime contra a humanidade, a Câmara de Comércio dos EUA criou uma Força Tarefa para erradicar o tráfico de pessoas. Além de medidas governamentais, o Instituto reconheceu que as empresas têm um papel chave em erradicar esse problema, de maneira que elaborou um guia[7] para ajudar companhias a implementar políticas de integridade que eliminem qualquer contribuição na cadeia do delito de tráfico de pessoas.


Muitas empresas sequer se dão conta de que estão contribuindo com organizações criminosas. Por exemplo, um estudo identificou que traficantes recrutavam trabalhadores e, em troca pelo emprego, cobravam taxas – impagáveis – sobre os respectivos salários. Os criminosos abriam contas em bancos, os trabalhadores depositavam seus salários e depois aqueles resgatavam o montante e deduziam da dívida criada (criminosamente) contra as vítimas. Tudo isso com a anuência de um banco.


De acordo com a Câmara de Comércio Norte-Americana, as soluções vão desde ações governamentais específicas em nível nacional e conscientização através da educação a iniciativas corporativas que possibilitem companhias a formarem soluções consistentes com o tamanho e o contexto de suas operações.


Dentre as medidas não exaustivas de integridade propostas em tal guia, listamos e comentamos as principais:


  • Envolvimento da alta administração.


Muitas companhias têm um código de conduta que demonstram o comprometimento de seus líderes com o respeito aos direitos humanos, que inclui erradicar o tráfico humano.


Salientamos que o comprometimento da alta administração é o pilar mais importante de qualquer programa de Compliance. Também conhecido como Tone From the Top, o compromisso da alta direção com valores éticos deve se dar não apenas por palavras e discursos, mas principalmente por ações e exemplos. Assim, se os tomadores de decisão passarem a mensagem de que fechar um negócio milionário com um fornecedor suspeito é mais importante do que respeitar os limites legais, então, esse programa de integridade jamais sairá do papel.


  • Identificar os fornecedores e as áreas onde o risco de tráfico humano é constante.


Empresas devem identificar quais operações e parceiros de negócios estão sujeitos a risco de envolvimento em tráfico humano. Para esse objetivo, a avaliação de riscos torna-se importantíssima para que as due diligences sejam direcionadas aos “alvos” certos, logo, eficazes.


  • Desenvolver e implementar políticas e programas que proíbam o tráfico humano.


As corporações devem desenvolver políticas claras e explícitas proibindo qualquer participação em tráfico humano, com política de tolerância zero ao tráfico humano no processo seletivo de seus fornecedores.


Essas políticas devem ser aplicadas tanto à própria companhia quanto a toda cadeia de fornecedores, incluindo parceiros comerciais como agências terceirizadas de empregos. Além de estarem explícitas no código de condutas, essas políticas devem ser incluídas nos contratos com fornecedores e parceiros comerciais.


  • Implementar treinamentos e programas de conscientização.


Os programas de treinamento devem educar os agentes relevantes nessa questão. Tal capacitação deve incluir ferramentas que identifiquem onde o tráfico possa ocorrer e o que fazer caso o problema seja identificado. Algumas empresas realizam treinamento conjunto e exercícios de conscientização com seus fornecedores e terceiros interessados.


  • Monitorar e medir impactos.


As empresas devem estabelecer indicadores de performance e metas para monitorar, eficientemente, a aderência a esses objetivos e parâmetros pelos parceiros comerciais. Algumas companhias contratam auditores para produzirem relatórios sobre os países em que operam, indicando qual é a situação econômica e política dessas nações e como isso afeta os respectivos trabalhadores.


  • Oferecer um canal de denúncias confidencial aos empregados dos fornecedores


Tal medida é muito importante para que os colaboradores dos fornecedores não tenham medo ao denunciar suspeitas de ilícitos das empresas em que trabalham.


  • Exigir que os fornecedores estejam em conformidade com as políticas da empresa.


E para não ficarmos apenas no plano teórico, citamos, a título de exemplo, duas companhias[8] que adotaram medidas para coibir o tráfico humano. Nos EUA, a Uber, em parceria com entidades não governamentais, desenvolveu materiais educativos que ajudam os motoristas a identificar sinais de tráfico humano e quais medidas eles devem tomar (ou não tomar) caso suspeitem de que um passageiro seja vítima ou esteja envolvido em tráfico humano.


Já a gigante do varejo Walmart, que possui uma das maiores frotas privadas de caminhões do mundo, tomou medidas para frustrar a prática de trabalhadores migrantes pagarem por emprego, além de dedicar atenção à cadeia de fornecedores.


Concluindo, não bastam apenas leis rígidas, tratados internacionais e ações repressivas – e não se nega que sejam relevantes, frise-se –, todavia, as empresas que possam incidir em risco de participação nesse crime, seja diretamente ou através de seus fornecedores, também desempenham um papel importantíssimo nessa questão. Logo, é fundamental que instituam ou reforcem seus programas de Compliance e colaborem com a erradicação do tráfico humano.




[1] Art. 149-A. Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de: I - remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; II - submetê-la a trabalho em condições análogas à de escravo; III - submetê-la a qualquer tipo de servidão; IV - adoção ilegal; ou V - exploração sexual. Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, e multa.


[2] § 1o A pena é aumentada de um terço até a metade se: I - o crime for cometido por funcionário público no exercício de suas funções ou a pretexto de exercê-las; II - o crime for cometido contra criança, adolescente ou pessoa idosa ou com deficiência; III - o agente se prevalecer de relações de parentesco, domésticas, de coabitação, de hospitalidade, de dependência econômica, de autoridade ou de superioridade hierárquica inerente ao exercício de emprego, cargo ou função; ou IV - a vítima do tráfico de pessoas for retirada do território nacional.


[3] Tal conceito encontra-se no art. 3, alínea “a” do Decreto nº 5.017 de 12 de março de 2004, que promulgou o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional Relativo à Prevenção, Repressão e Punição do Tráfico de Pessoas, em especial Mulheres e Crianças.


[4]https://www.unodc.org/documents/data-and-analysis/glotip/2018/GLOTiP_2018_BOOK_web_small.pdf


[5]https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/assuntos-fundiarios-trabalho-escravo-e-trafico-depessoas/trafico-de-pessoas/


[6]https://www.unodc.org/unodc/en/humantrafficking/faqs.html#what_is_the_role_of_transnational_organised_crime_groups_in_human_trafficking


[7]https://www.uschamber.com/sites/default/files/eliminating_human_trafficking__a_case_for_corporate_self-regulation.pdf


[8]https://www.freeenterprise.com/uber-ups-walmart-marriott-combatting-human-trafficking/

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